Celso Álvarez Cáccamo (3)

Celso Álvarez Cáccamo 

3 de Novembro de 2003

 

 

    É notícia que o príncipe de Espanha, Felipe de Borbón, acaba de anunciar o seu próximo casamento com a jornalista Letizia Ortiz. Entrado o século XXI, o povo continua a ver-se sujeito a cerimónias medievais, adereçadas mediaticamente com o bombardeamento humanitário dos telejornais, magazines, e outros subprodutos. Entre os absurdos desta situação política e social está a necessária aprovação deste futuro casamento polas Cortes espanholas (as câmaras do Congresso e o Senado). O epígrafe 4 do artigo 57 do Título II da Constitución Española diz (intraduzo, porque as leis espanholas, espanholas devem ficar, não distorcidas polo falacioso exercício de pretender fazê-las galegas, bascas ou catalãs a traduzi-las): "4. Aquellas personas que teniendo derecho a la sucesión en el trono contrajeren matrimonio contra la expresa prohibición del Rey y de las Cortes Generales, quedarán excluídas en la sucesión a la Corona por si y sus descendientes". Quer dizer, se as Cortes espanholas não aprovarem este casamento, Felipe de Borbón não poderia ser rei de Espanha quando Juan Carlos morrer. Mas a hipótese é impensável. E, contudo, outro rei ou reina sofreríamos.

    Mas, que lhe deu a monarquia, esta monarquia, qualquer monarquia, à Galiza, a qualquer dos países do reino? Ignoro tanto os detalhes da história política da Galiza como a de Espanha, é um dos meus problemas mentais. Mas, como amostra, dos últimos fotogramas que mais ficam na minha retina é o do actual rei Juan Carlos a descer ex-machina à praia totalmente petroleada de Mugia, quando do inacabável desastre do Prestige, com os seus impecáveis sapatos pagos por nós, a fazer-se a foto enquanto criticava os políticos que se faziam a foto. Pura propaganda monárquica e direitista. Porque, não esqueçamos, o rei é o Chefe do Estado, do mesmo estado que leva décadas a mostrar negligência, desprezo e esquecimento polo bem-estar das gentes da Galiza. E o rei é o Chefe de Todos os Exércitos, dos mesmos exércitos que tardaram semanas em baixar a limpar o piche das nossas praias mas tardaram dous dias em ir a Iraque para matar humanitariamente ou repartir esmola ocidental a um povo que deveria ser deixado em paz. Portanto, o rei não é nem pode ser neutral: nem este, nem o vindeiro, nem nenhum. A monarquia é um jacobino resíduo sexista, classista e espanholista, num país de países envenenado por Gran Hermano. Porque, por qual razão que não for primitiva se herda patrilinearmente a representação política, o controlo de todos os exércitos, o privilégio de sancionar as leis, de nomear o presidente do governo eleito polo parlamento, etc. etc.? A monarquia é o maior obstáculo para o raciocínio humano numa Espanha politicamente esclerótica.

    E um parlamento inteiro de 350 pessoas terá de se pronunciar, de uma maneira ou outra, sobre se o sangue azul de Felipe se pode mesclar ou não com o sangue vermelho de Letizia! Se podem ou não os amantes legitimamente misturar os seus orgânicos humores nas noites em que os seus exércitos continuem a ocupar humanitariamente qualquer país! Será interessante ver que posição política sobre esta erótica ligação (ir)real tomam no parlamento espanhol os (poucos) representantes do nosso republicano Bloque (sic) Nacionalista Galego.

    Mas dizem as boas línguas que entre os inconfessados planos políticos deste principinho azul Felipe estaria, quando herdar a coroa, renunciar e submeter a monarquia a referendo. Ou algo assim. Seria o acto mais inteligente da sua vida. Espero viver para vê-lo, agora que o povo está desactivado para botar directamente a monarquia aos caimães do esquecimento, que é o que merece. Sim, seria inteligente, sobretudo porque Felipe poderia ganhar o referendo! Mas já sabemos que a inteligência está renhida com o Poder. E a Galiza, se na altura ainda existe, continuará a ter rei para um tempinho. Até anda outro nobre chamado de Bragança por aí a fazer-lhe as beiras à Galiza, como se um só pretendente não fosse suficiente. Vaites, vaites!, como enxotamos nós os maus agoiros. Saúde e república --diz o colega António Gil--, que é uma forma algo menos cavernícola de oprimir-nos.

 Celso Álvarez Cáccamo

 (Artigo publicado na edição impressa de 7de Novembro, pág. 4)

Celso Álvarez Cáccamo

 

24 de Setembro de 2003

 

 

 

                Pouco se sabe em geral nesse lugar que por convenção chamamos Portugal do que acontece em matéria de língua(s) (e de muitas outras cousas) nessoutro lugar que por convenção chamamos a Galiza: refiro-me à parte da Galiza na altura submetida (como todos os países naturais) aos efeitos dum Estado, o Reino de España, em cujo centro mora um enorme eñe imperial.  Na realidade, as cousas da língua na Galiza são tanto muito complicadas como muito singelas.  Tentarei resumi-las pobremente, para ver o comum no respeitante ao papel da língua na vida diária.

 

                É sabido, isso sim, que na Galiza se falam dous idiomas.  Do espanhol, nem direi muito: é uma forma de espanhol que não se pode identificar com o falado na Andaluzia ou na Bolívia, mas que, na mente de muitos (esse prodígio de catalogação da realidade), é “o mesmo”.  Da outra e primeira língua da Galiza, o português --que coloco em segundo lugar simplesmente para poder estender-me mais--, direi quase o mesmo: o português galego não se pode identificar plenamente com o alentejano ou o carioca; por isso (e aqui vem a diferença), na mente de muitos é “outra cousa”, “outra língua”.

 

                Qual é a fonte de tal divergência no tratamento destas duas línguas na Galiza? (a própria, que é o português, e a historicamente alheia e agora socialmente dominante, que é o espanhol).  Que faz o Estado espanhol para impor tal distinção nas mentes?  E que não faz o Estado português para restaurar o equilíbrio na visão das línguas na Galiza?

 

                Simplesmente, o Estado espanhol impõe sobre nós as letras: a palavra escrita, a cultura escrita, o sistema educativo em espanhol... enfim, a ignorância do próprio como método. Por meio do sistema educativo e doutros dispositivos criam-se os contrastes entre os falares “regionais” galegos (periféricos, quase atávicos, perdidos num recanto dessa tristíssima piel de toro, e portanto “tolerados” como curiosidade) e a letra impressa espanhola, que da sua ortografia até ao discurso vem embebida de ânsias nacionais espanholas, quer dizer, coloniais.

 

                Mas, por acaso não é isto o que faz o Estado português com os falares dos seus súbditos?  Não impõe o “ão” onde se diz o “om”, o “ou” onde se pronuncia “o”, o “v” onde se realiza o “b”, o “também não” onde existe o “tampouco”?   Por acaso não cria o Estado português miragem de unidade da mesma maneira?  Sim, e não.  Portugal estabelece estas diferenças (sempre de classe) entre falares e escrita, e portanto entre grupos sociais, sobre e contra a sua própria língua, o qual não deixa de ser um mecanismo de dominação dos estados tão comum que se torna, por obediência, em direito dos cidadãos ocidentais a serem correctamente disciplinados na Língua.

 

                É isto exactamente, nem mais nem menos, o que queremos muitos galegos e galegas (provavelmente muitos mais do que se pensa): que a nossa língua escrita, a que nos divide e classifica como sábios ou parvos, como pobres ou ricos, seja o mesmo instrumento que têm outros países de língua comum.  Não queremos escrever o galego em espanhol: queremos o direito a sermos dominados, como qualquer país ocidental normal, pola Língua própria, que no nosso caso é a portuguesa.  E nesta matéria Portugal inibe-se porque cai do outro lado dum rio inexistente.  Má sorte, ou má política de estado?

 

                Se as cousas fossem normais na Galiza, nem este textinho seria necessário: falaríamos dos assuntos que têm importância.

(Artigo publicado na edição impressa de 24 de Outubro, pág. 10).

Prof. Dr. Celso Alvarez Cáccamo

 

 

 

Depto. de Galego-Português, Francês e Linguística

 

Universidade da Corunha

 

 

 

 

 

28 de Dezembro de 2001

 

 

 

 

 

O quê dizer sobre a língua galego-portuguesa moderna na Galiza que não esteja já dito?  Na realidade, as etiquetas “língua”, “escrita”, “lusofonia” ou “lusografia” reúnem tal quantidade de práticas sociais diversas (práticas de classe) que qualquer tentativa de descrição -- e ainda mais de “defesa” -- de uma ou outra não pode ser senão uma enorme redução, com objectivos também de classe.  Por um vago princípio fujo de qualquer posicionamento que coloque a “língua” por cima das pessoas.  A glorificação das línguas cobra tais dimensões entre as elites cultas de um país que só se pode entender como o seu exercício de manutenção da sua posição de classe.  Argumentará-se (ou deveria escrever, lusograficamente, argumentar-se-á?; porque?) que dentro dos campos “lusógrafos” há variadas posições de classe, assim como dentro do campo “isolacionista” da Galiza na actualidade.  Mas o que constitui estes grupos, estas empresas de actividade humana, é a sua penetração e intervenção na variedade da linguagem para reduzi-la a totem, símbolo, moeda de troco, e todas estas cousas à vez.

 

 

 

Infelizmente, a questão é mais singela que a sua representação social por grupos interessados na Língua como objecto.  Tem-se dito tantas vezes e em tantos lugares ainda sem ler que sobejaria repeti-lo: há gente que tem e gente que não tem.  Há gente que possui os meios de produção dos bens materiais e simbólicos e gente que não os possui.  Não podia ser diferente no caso da língua.  Não podia ser diferente na Galiza.

 

 

 

É apenas historicamente contingente que, na altura, a interpretação dominante sobre o idioma na Galiza o situe como um produto e artefacto cultural espanhol, embora sectores reintegracionistas e parte das elites isolacionistas privilegiadas o neguem, e, de boa fé, façam bastante (nunca se pode dizer “tudo o possível”) por resistirem contra as formas de fascismo encabeçadas por grupos e pessoas com nome e apelidos, como Manuel Fraga Iribarne.  Podia ter sido de outra maneira: podia ter triunfado certa razão linguística e cultural lá por volta dos 70, ou mesmo depois, ou mesmo antes, pois também não vejo como inerentemente necessário que o projecto nacional espanhol precise de uma concepção puramente isolacionista do galego.  Sempre é mais fácil predizer o passado, justificar pós-facto como os eventos foram hegelianamente necessários para este estado de cousas.  É mais fácil, mas a profecia do passado é inútil.  A situação está a ser assim, isso sim, e esta evidência é suficiente para analisarmos onde estamos e aonde irmos, se esse “mos” existe.

 

 


A concepção galego-portuguesa da língua (que reúne etiquetas temporariamente úteis, como “reintegracionismo” ou “lusismo”) não poderá estender-se no imaginário social sem uma séria penetração nas estruturas onde se gere a dominação.  E para fazer isto precisará convencer as elites hegemónicas de que estas letras portuguesas que utilizo não são uma ameaça: não uma ameaça para o “Povo” ou o “Pobo”, não, mas para aqueles que constroem o Povo e o Pobo.  Se estas elites estivessem dispostas a reconhecerem que o seu domínio sobre as cousas da língua é uma cousa trivial, a cerimónia da construção social de classe poderia tomar outros caminhos.  Mas, se predizer o passado é inútil, lembrar o futuro é árduo: não há suficientes instrumentos para interpretarmos os poucos signos presentes acessíveis (signos há muitos, mas resistem-se à análise, portanto não são signos) que nos indiquem o quê vai acontecer no país daqui a dez ou vinte anos em matéria de ideologias linguísticas e práticas orais e escritas.  Parece, sim, que desce o número de falantes nativos do galego.  Mas também parece que na Galiza se escreve em português mais que nunca, relativamente a outros tempos e relativamente a usos não portugueses (quer dizer, usos isolacionistas galegos).  O quê se faz destes factos?  Caminhamos face a uma elitização maior da escrita galega na Galiza?  Que significado tem isto para uma análise da reprodução de classes?

 

 

 

Obviamente, poderia propor uma alternativa emancipadora de signo muito diferente: uma sociedade essencialmente distinta onde o valor das letras, da alfabetização, da cultura escrita se situasse num nível de intranscendência agora indescritível.  Mas não tenho nenhum argumento para justificar que, nessa sociedade, fosse esta concepção galego-portuguesa a mais razoável.  Provavelmente nenhuma concepção da língua fosse mais “razoável” do que outra: simplesmente, as visões e práticas da língua aconteceriam. Quando a diversidade das condutas não afectasse à classificação social em ignominiosas escalas, é de supor que o mesmo aconteceria com as práticas da fala e da língua.  Nessa hipotética altura, ser “reintegracionista” ou “isolacionista” seria tão pouco transcendente como caminhar mais lento ou mais rápido.  Estamos muito longe desse lugar, não por mor da “Língua”, mas dos exércitos e dos santorais do mundo, que matam corpos e mentes e infectam com as suas hierarquias todas as actividades humanas.

 

 

 

Qual é, portanto, a situação actual da “língua” na Galiza?  Em que estado de cousas devemos mover-nos?  A situação linguística é, simplesmente, mais uma manifestação do controlo social, da divisão, da classificação e ré-classificação sociais.  Esta dominação -- este contributo da língua para a dominação -- não é igual aqui que em outras formações sociais, nem pretendo sugerir isso: entrecruza-se de maneiras específicas com também específicas questões nacionais e de classe, que lhe dão a esta questione della lingua a sua complexidade e até matéria para o ocasional e fátuo brilho intelectual.  Mas, essencialmente, na intervenção sobre a língua na Galiza também se trata da colonização da mente e da obtenção de capitais por sectores privilegiados.  Reconhecer estes processos no espelho da palavra escrita deveria ser o primeiro passo para combatê-los, até por desídia.  E, nesta pequena resistência, qualquer totalização é o pior adversário da razão.  É claro que há projectos distintos dentro do campo cultural galego-português, como os há dentro do campo isolacionista.  Mas acredito (intuo) estarmos num momento de especial fragilidade, de especial tensão política e intelectual, onde algo que poderíamos chamar “unidade de acção” faz-se um pouco mais importante.  Deveria (poderia) ser uma unidade sobre bases amplas, como a clara revindicação da legitimidade, nas proclamas e na prática diária, e como a concessão do “benefício da dúvida” face aquelas posturas com considerável base social que ainda não compartilham o valor totémico da grafia “ã”.  Explico-me?  Na altura, na Galiza a primeira fronteira simbólica social dessa prática chamada “lusografia” na Galiza, à margem das nossas detalhadas análises (que existem) sobre o valor indéxico da escrita, passa pola aberração visual do “ç” cedilhado (e do “ss” duplo, do “m” final, etc).  Como converter, em primeiro lugar, essas aberrações em normalidade quotidiana, dentro da nossa analfabetização maciça, eis uma parte inicial da questione della lingua.  Uma parte muito pequena, contudo: infelizmente, “euro” e “cent” escrevem-se igual em toda Europa, e isso também (e sobretudo) é Língua: é O Discurso.

 

 

 

Celso Álvarez Cáccamo             

 

TEL. +34 981 167000 ext. 1888

 

FAX. +34 981 167151

 

 

 

Depto. de Galego-Português, Francês e Linguística

 

Universidade da Corunha                         

 

celsoac@udc.es

http://www.udc.es/dep/lx/cac